O Casal

Os advérbios de modo são as palavras mais racionais que existem, isto porque adicionam um pouco de "mente" a tudo. Funcionam quase como o sal ou a pimenta que nos permitem temperar ou apimentar os nossos pratos preferidos ao próprio gosto.

Quando ando pelas ruas de Lisboa sinto-me um advérbio de modo ambulante. Em constante racionalização, tanto observo as nuvens altas no céu que fazem desenhos esquisitos por entre camadas de gases diversos, como olho para postes de electricidade e choco-me comigo mesma por os equiparar a manequins: altos, magros, quase todos iguais e perigosamente fulminantes.

Nunca gostei de me deixar acompanhar por dispositivo áudio que fosse. Os entraves que neles encontro são mais do que muitos, mas o pior, mesmo, é não poder ouvir o ranger de janelas pequenas, e antigas, algures no Bairro Alto ou os suspiros de dor, e cansaço, de quem se senta a uns metros de mim no autocarro. 

Gosto sempre de inventar uma história qualquer para ambos os casos. Com certeza, as duas envolveriam, sem qualquer dúvida, momentos de terror. Não me considero uma pessoa sádica, mas a minha imaginação costuma seguir por esses caminhos. É-me sempre mais fácil imaginar cenários mórbidos e obscuros do que bonitas histórias de princesas que beijam sapos.

Apesar desta tendência se revelar ser uma prática constante entre os neurónios cansados e debilitados que possuo no cérebro, naquele dia foi impossível segui-la.

Era um casal. A palavra assusta, fere o ego dos boémios epicuristas. Mas eles não. Tamanha gentileza, delicadeza, uma suavidade éterea em dois olhares tão reconfortantes quanto a sensação de voltar ao berço e ser embalado por uma figura maternal, angelical e pura.

Ela. Agarrava-o pelo cotovelo, colocando a mão sobrante na cova profunda e acentuada das suas costas. Ele. Deixava-se guiar, confiando cegamente nos instintos do seu par.

Vestiam tweed a combinar. Se o topo do seu corpo exibia peças encarnadas, a base do corpo dele casava a cor. E entre uma encruzilhada de tecidos e cores emparelhadas, qual positivo-negativo fotográfico, o amor emanava totalmente despreocupado daquilo que o circundava.

E ainda que uns meros cinco centímetros separassem os calcanhares dela do chão, eram os sapatos que lhe davam individualidade. De cor berrante, carregada e já um pouco usada, quase me fizeram gritar: "Quando crescer, quero ser como tu" ...

Marta F. Cardoso - 21.11.2013
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Prioridades

Hoje vi três senhoras acima da casa dos 50.

Uma delas carregava sacos nitidamente pesados, provavelmente teria vindo do supermercado. Mesmo assim, calçava umas cunhas de madeira embelezadas com tachas metálicas. Outra das senhoras primava pela escolha de umas calças de linho com um padrão eléctrico e, por fim, a última das senhoras envergava em mãos uma mala preciosíssima combinada com umas botas de cano alto e um casaco de malha. O seu penteado imaculado quase que poderia ser considerado como um acessório, visto estar tão perfeitamente desenhado que se assemelhava a um chapéu.

Refiro isto pois falava eu há uns dias, em contexto de reunião, com a Dra. Clara Vaz Pinto e a Dra. Rosário Severo, acerca das lacunas existentes no que diz respeito à captação de imagens de streetstyle de, essencialmente, mulheres desta faixa etária. Chegámos à conclusão de que são poucos os fotógrafos que dão destaque a um estilo mais maduro e sábio. Discutindo as ideias entre nós, vimos que a falta de tempo e de dinheiro é um factor decisivo no que diz respeito à manutenção do estilo e da beleza. Talvez esses sejam os factores principais para ser mais comum ver-se jovens mimosas e senhoras em tons de cinzento.

A meu ver, quando se amadurece, outras prioridades ganham relevo nas nossas vidas. A família é posta em primeiro plano. Passamos a viver para os filhos, para o trabalho, para uma casa. Acabamos por nos esquecer de nós e isso reflecte-se na nossa imagem. Não quero com isto dizer que dou valor às aparências, antes pelo contrário. É por me preocupar com os motivos que levam ao descuramento de nós mesmos que decidi partilhar isto convosco.

As pessoas andam tristes. E eu tive pena.

Tive pena porque hoje deixei a minha máquina em casa.

Marta F. Cardoso - 16.05.2013
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Pastéis de Belém, Pastéis do Mundo

Belém. Local cultural por onde passam pessoas de diferentes nacionalidades. Local histórico que se confunde num leque de várias paisagens. Local monumental visitado por diferentes gerações e por diversos motivos. Belém. Uma zona privilegiada de Lisboa, banhada pelo rio Tejo e iluminada pelo estilo manuelino. Uma zona que, sendo carregada de tradição, memórias e lendas, recebe desde famílias a turistas de todo o mundo.

A carga histórica deste local é impossível de negar. Ancorado pela Torre de Belém e elitizado pelo Centro Cultural, Belém é um porto de abrigo para os artistas que lá passam em busca de inspiração.

O Mosteiro, o Palácio, os Jardins, os sonhos e os amores. Belém tem história. Uma história densa, marcada por palavras ditas há séculos atrás e ansiada por palavras que se vão soltando à medida que o tempo passa. Estas palavras correm tanto na boca de conversas alheias entre casais apaixonados, bem como na alma de quem apenas procura este local para se sentir em casa.

É lá que corre um rio, é lá que correm lágrimas. Correm pintores, cantores, músicos e letristas. Correm mulheres e homens. É em Belém que algumas crianças começam a dar os seus primeiros passos, ainda incertas do que o futuro lhes reserva e daquilo em que, um dia, se virão a tornar.

Eu fui uma dessas crianças. Brinquei nos jardins. Cresci a amar os pássaros e a subir às árvores ao pé da Torre. Foi lá que comecei a construir-me e foi lá que, por vezes, me desconstruí. Foi em Belém que aprendi a amar não só a história e as letras, mas também a humanidade e toda a diversidade que ela representa.

Se forem a Belém, não passem pelos Pastéis. Façam-nos vocês mesmos. Criem memórias, ilustrem pensamentos, fechem os olhos enquanto se deitam na relva, caricaturem os vossos medos, discutam pormenores, abram o coração. Bebam aquilo que vos rodeia e aprendam a conhecer-se. Pintem com novas cores, inventem novas palavras, desenhem novos sorrisos. Comecem de novo, se precisarem. Dêem continuidade ao que já foi feito, se o caso for esse.

Se forem a Belém, não passem pelos Pastéis.

Façam-nos vocês mesmos.

Marta F. Cardoso - 27.05.2013
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